Ricardo Lestre, Author at Fair Play

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Ricardo LestreMarço 18, 201816min0

Luís Viegas é outro português, profissional no mundo do futebol, que brilha além fronteiras e num país bem peculiar. Em 2014 mudou-se de malas e bagagens para a Tailândia, depois de uma experiência no Beira Mar, para assumir as funções de analista e chefe de departamento de scouting do True Bangkok United, equipa até então treinada por Rui Bento. E de lá nunca mais saiu. Em entrevista exclusiva ao Fair Play, Luís Viegas falou sobre a capital tailandesa, o futebol do país, a realidade do seu clube e o papel do analista nos dias de hoje.

Luís, antes de mais, gostaria de te agradecer em meu nome e do Fair Play por teres aceitado o convite para a realização desta entrevista. Fala-nos um pouco do teu passado e de como ingressaste na vertente de analista e scout. O futebol sempre foi uma paixão?

LV. Para mim é um privilégio ter espaço neste vosso projecto que aprecio bastante pela abordagem diferenciada que faz sobre esta modalidade que é uma paixão que nos une. Desde pequeno que gostei de ler e de ter o máximo de informação sobre o jogo e os jogadores, algo que hoje é tão facilitado pela internet, mas que antes só se encontrava em jornais ou revistas como os Cadernos d’A Bola. A ligação desenvolveu-se como jogador, aos 12 anos, nas camadas jovens do Santacombadense, que foi o meu primeiro clube. Estive depois quatro temporadas ligado à Académica, duas como juvenil e duas como júnior. Esse período foi marcante, pelo que clube que é e pelas pessoas com quem me cruzei, tendo de destacar o José Viterbo, que foi o meu treinador nos juniores. Aliás, o actual presidente da Académica, Pedro Roxo, foi meu colega nesse período. Já como sénior fiz apenas alguns meses, em épocas diferentes, no Tabuense, no distrital de Coimbra. Tinha entrado no Ensino Superior, em Comunicação Social, e logo no início do curso comecei a trabalhar como jornalista, precisamente no jornal da Académica, que então era dirigido por Fernando Pompeu, outra das referências com quem tive a privilégio de me cruzar. Foi aí o início de um percurso de cerca de dez anos. Colaborei com os dois jornais da cidade, mas o meu trajecto foi sobretudo no jornal O Jogo, primeiro como correspondente em Coimbra e depois na redacção de Lisboa. Acompanhava a Selecção Nacional e, entre outros momentos e eventos marcantes, estive no Mundial da África do Sul, com o Manuel Casaca. Esse período foi fundamental para a minha carreira, primeiro porque me proporcionou o contacto com dirigentes, treinadores e jogadores de alto nível, dando-me também uma excelente network, e depois porque o que fiz durante esses anos foi observar, analisar e explicar o jogo, que é exactamente o que faço hoje.

Em 2011 fui então trabalhar para a recém-criada SAD do Beira-Mar, onde estive durante quase dois anos e meio, até Novembro de 2013, tendo desempenhado diferentes funções, começando até mais na área da comunicação e terminando como team manager, passando pela edição de vídeo e ligação da equipa técnica com a Administração. Foi uma experiência marcante, num clube especial, onde trabalhei com pessoas que muito me ensinaram. Destaco três: o Rui Bento e o Costinha, como treinadores, e o Hugo Vieira, que foi e é um exemplo de rigor e profissionalismo.

Até que em 2014 surgiu um destino… pouco provável: Tailândia. Como surgiu o convite e a oportunidade de rumares a um país tão… exótico?

LV. A oportunidade surgiu precisamente através do Rui Bento. Apesar de ele ter saído do Beira-Mar em 2012, mantivemos sempre uma relação próxima e ele convidou-me para o acompanhar quando assumiu o Bangkok United, em Janeiro de 2014. O Rui Bento acabou por ficar aqui pouco tempo, mas eu continuei, estando desde Junho desse mesmo ano a trabalhar com o Mano Pölking.

Dadas as tuas funções dentro da equipa técnica, como analista e chefe de scouting, qual foi a primeira impressão das condições de trabalho oferecidas pelo agora denominado True Bangkok United? Cumpriram com as expetativas?

LV. Vim para aqui numa altura em que o Bangkok United procurava crescer, profissionalizar-se e aproximar-se das condições e da forma de trabalhar dos clubes europeus. Ou seja, aquilo que me impressionou foi sobretudo a disponibilidade para investir e acompanhar o que de melhor se faz no futebol. As condições de trabalho têm vindo a melhorar de ano para ano. Só nos falta ter um estádio próprio, um projecto por enquanto em stand-by. Mas por exemplo a nível de software e tecnologia temos à disposição praticamente o mesmo que os clubes de topo na Europa.

Atualmente, quantos e quem são os membros que fazem parte da equipa técnica do Bangkok United?

LV. A equipa técnica tem neste momento 11 pessoas, entre responsáveis por departamento e assistentes locais. A comunidade lusófona é constituída pelo Mano Pölking, o preparador-físico, Paulo Alexandre Oliveira, também brasileiro, e dois portugueses: eu e o Pedro Ramos, que estava no Cova da Piedade e que veio este ano trabalhar comigo.

(Foto: Arquivo pessoal)
Com dois cargos de extrema importância, o teu dia-a-dia deve ser bem atarefado…

LV. É sobretudo um dia-a-dia desafiante e motivante. Na parte do scouting, procuramos ter actualizada uma base de dados com jogadores locais e estrangeiros para estarmos preparados para as necessidades de cada janela de mercado. A análise é, naturalmente, a actividade que nos toma mais tempo. O Mano dá muita importância à análise, seja da própria equipa ou do adversário. Claro que da forma como trabalhamos, procurando ter e passar o máximo de informação, a principal limitação até é em termos de recursos humanos, mas temos um calendário e um workflow bem definidos.

Na Tailândia, existe cultura desportiva? Tem o jogador tailandês alguns princípios enraizados ou a situação é semelhante, por exemplo, à do futebol chinês?

LV. O povo tailandês adora futebol e aqui a prática é muito mais comum do que na China. Tecnicamente, aliás, os jogadores tailandeses têm uma qualidade bastante interessante. Foi algo que me surpreendeu. O problema, ou aquilo que os impede de competir a um nível mais alto, é a parte física, mas sobretudo a táctica, devido à falta de formação de base. E depois existem outros aspectos sócio-culturais, como a alimentação, que acabam por ter influência. Mas a modalidade tem crescido muito e a liga também. A tendência é essa, até porque a liga só é profissional há menos de dez anos.

Os obstáculos devem ser imensos assim que é necessário transmitir uma ideia de jogo, explicar uma estratégia e retificar comportamentos a toda a equipa.

LV. Não é assim tão complicado. Um dos adjuntos locais também se encarrega da tradução e depois, além de três brasileiros e um argentino, temos vários jogadores com dupla nacionalidade que se expressam bem em inglês. O que eu diria que por vezes é complicado é corrigir erros que normalmente são corrigidos quando os jogadores têm 11 ou 12 anos. É essa falta de base que, nalguns casos, dificulta a tarefa. Mas no geral, seja a ideia de jogo ou a estratégia, a comunicação é relativamente fácil, sempre com o apoio do vídeo, que é uma arma poderosa. Fundamental é saber lidar com a cultura, uma cultura em que o factor competitividade não está tão vincado. Por exemplo, fazes um 5 contra 5 em Portugal e eles até se “matam”. Aqui não é assim. É preciso saber levá-los, saber estimulá-los. Mas também nisso o Mano é exímio.

Conta-nos um pouco do estilo de jogo implementado pelo mister Mano Pölking.

LV. É um estilo de jogo baseado na posse de bola, no passe, na criatividade, na pressão alta… Toda a gente estará de acordo com a ideia de que ter a bola é a forma mais fácil de controlar o jogo. Obviamente que depois depende de se ter ou não jogadores com capacidade para colocar em prática essa ideia. Porque no fundo é a qualidade deles que faz a diferença. Aí entra em acção a parte estratégica, o olhar para o adversário, para as condicionantes. Mas aqui temos tido plantéis construídos precisamente de acordo com essa ideia. E os números falam por si: na época passada tivemos o melhor ataque do campeonato. Creio, ainda assim, que temos vindo a conseguir melhorar nalguns aspectos, como por exemplo nos ataques rápidos. Depois, procuramos trabalhar e desenvolver a parte defensiva, sobretudo a transição, que será sempre o handicap de quem privilegia a posse de bola, de modo a termos uma equipa equilibrada. E creio que temos. Aliás, são os próprios adversários, como o Bruno Moreira ou o Yannick Djaló, só para citar os conhecidos do público português, a elogiar o nosso futebol. Não me esqueço daquilo que o Bruno Moreira me disse no final de um jogo: “Parabéns! É difícil jogar assim em qualquer lado, mas ainda mais aqui na Tailândia.” E isto vindo de alguém que tinha acabado de trabalhar com o Paulo Fonseca…

(Foto: Arquivo pessoal)
Existe mais vida para além dos clubes grandes como o Buriram Utd e o Muangthong na Thai Premier League? De que forma se consegue contrariar o poderio desses dois conjuntos? O campeonato é competitivo no geral?

LV. É uma missão realmente difícil, porque esses dois clubes investem mais, têm mais adeptos e têm condições de trabalho que nós ainda não temos. Há dois anos ficámos em segundo, no ano passado em terceiro e este ano vamos tentar andar lá em cima. Este campeonato pode vir a ser mais competitivo do que os anteriores, uma vez que o Muangthong perdeu três jogadores tailandeses de grande qualidade (dois foram para o Japão e um para a Bélgica). A nossa vantagem, ou aquilo que nos permite contrariar o poderio desses clubes, é a organização que o nosso clube tem, com um presidente e uma manager exemplares, e sobretudo a aposta na continuidade, num trabalho sustentado. Numa liga em que são frequentes as trocas de treinador, o Mano já está há quatro anos no clube, o que é um recorde de permanência, e o resultados estão à vista.

Tem a Thai Premier League capacidade para ombrear com as restantes no contingente asiático? Achas que a disparidade se reflete acima de tudo nas competições continentais?

LV. Falando, por exemplo, da capacidade de investimento, aqui já há quem pague mais do que a maioria dos clubes da Coreia do Sul ou do Japão. Na Ásia, aliás, só a China está num patamar claramente inatingível. Já em relação ao nível do campeonato tem vindo a subir gradualmente e os representantes da Tailândia na fase de grupos da Liga dos Campeões têm tido participações que se podem considerar positivas, mas claro que países como a Coreia do Sul ou o Japão tem mais tradição e sobretudo mais jogadores locais de qualidade.

Dentro de alguns anos, o True Bangkok United pode lutar por um lugar na Liga dos Campeões Asiáticos? A estrutura atual tem condições para tal?

LV. No ano passado disputámos a eliminatória preliminar de acesso ao play-off, mas perdemos nos pénaltis contra o Johor, campeão da Malásia. O actual formato da competição é difícil para as equipas tailandesas: só o campeão tem lugar garantido na fase de grupos, enquanto o segundo e o terceiro têm de ganhar um play-off, a apenas uma mão, em casa do adversário, normalmente equipas do Japão, da Coreia do Sul ou da China. Mas sem dúvida que esse é um dos nossos objectivos, até pelos planos de internacionalização do clube, que pertence à maior empresa da Tailândia, e neste momento contamos com uma estrutura que nos dá as condições necessárias.

(Foto: Arquivo pessoal)
Nos dias de hoje, consideras que o futebol asiático, sendo um diamante ainda por lapidar, está a ser mal explorado por muitos profissionais sobretudo na Europa?

LV. O futebol asiático pode ser visto de vários ângulos. Do ponto de vista do marketing, acho que é evidente a importância que tem e a forma como é muito bem explorado por ligas como a inglesa ou o interesse que os japoneses da Bundesliga despertam no seu país. O povo asiático adora futebol e tem a cultura do ídolo. Já quanto à parte desportiva, do aproveitamento de jogadores, sem dúvida que há muito por explorar e por outro lado acredito que a qualidade individual vai crescer naturalmente com o facto de haver cada vez mais treinadores estrangeiros e mais trabalho na formação. Agora, depende sempre do que se procura e do projecto que se tem, em que contexto se pretende inserir o jogador e até onde há disponibilidade para o enquadrar numa cultura diferente. E, claro, a Ásia é um continente muito grande e um jogador tailandês é diferente de um japonês ou de um sul-coreano. A capacidade de adaptação e de assimilação são diferentes. Por exemplo, trabalhei com o Zhang Chengdong no Beira-Mar e dificilmente irei encontrar um jogador que conheça tão bem o jogo como ele.

Por outro lado, achas que agora mais do que nunca o papel do analista e do próprio scout no mundo do futebol tem evoluído de forma gradual?

LV. Absolutamente. O nosso objectivo diário passa, antes de mais, por ajudar o treinador a tomar decisões. E depois completa-se com a participação no processo de desenvolvimento individual e colectivo da equipa. Creio que hoje em dia já ninguém duvida da importância do analista e isso tem sido deixado claro pelos principais treinadores mundiais. O mesmo se passa em relação à figura do scout. Um clube com um departamento de scouting bem estruturado é um clube melhor preparado para o presente e para o futuro. Numa actividade que gere e envolve tanto investimento, é fundamental ter o máximo de conhecimento, de informação e de critério possíveis no processo de scouting.

Estando já há quatro anos a viver na capital da Tailândia, cuja realidade é bem diferente da do nosso país, certamente que as situações caricatas que viveste são imensas. Fala-nos sobre algumas delas.

LV. No dia-a-dia as situações mais caricatas ou inusitadas resultam sobretudo da forma como o povo tailandês vive a vida: relaxados, tranquilos, considerando que se as regras existem são para quebrar, mas acolhedores e atenciosos. Bangkok é uma cidade multicultural que não pára, não dorme, uma cidade de contrastes. E a Tailândia é sem dúvida um país que vale a pena visitar. Não só pelas praias, que são paradisíacas, mas também pela história e também até pelo contacto com a religião budista, que tem vários ideais que nos fazem pensar.

Estando do outro lado do mundo, como tens acompanhado e qual a tua opinião sobre o futebol português e os seus imbróglios bem característicos?

LV. O futebol português tem pessoas muito conhecedoras, sobretudo na Federação, e creio que de uma forma geral os clubes portugueses estão melhores, têm apostado em infra-estruturas e têm investido em estruturas mais competentes e capazes. Temos jogadores de alto nível e treinadores competentes, tanto em Portugal como espalhados pelo mundo. Trabalha-se bem na formação e a prova é que se continua a produzir jogadores de enorme talento, numa relação proporcional à população que nenhum outro país terá. Ainda noutro dia mostrámos à nossa equipa o golo do Rafael Leão no Dragão. Não é normal um jogador de 18 anos fazer uma diagonal de ruptura como aquela. O bom do futebol português tem a ver com o facto de o país estar profundamente ligado à modalidade. É cultural. Uma vez houve aqui uma pessoa que me perguntou se Portugal era em África. Mas essa mesma pessoa sabia que Portugal é o país do Mourinho e do Ronaldo. O futebol faz parte da vida do povo português e será sempre uma das suas principais bandeiras, se não mesmo a principal. Agora, claro que há demasiado ruído e pouca preocupação em divulgar o jogo e melhorar o conhecimento dos adeptos, algo que também é cultural. Se eu for agora à internet e abrir sites de países do Sul da Europa, vai falar-se mais de assuntos paralelos ao jogo do que do jogo em si. Mas se abrir um site inglês ou alemão isso provavelmente já não acontece.

(Foto: Arquivo pessoal)

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